clínica ética em meio a desafios pessoais

Como a Escuta Clínica do Psicólogo se Fortalece na Dor

Manter uma clínica ética em meio a desafios pessoais é um dos maiores dilemas do psicólogo. A vida nos atravessa com dores, perdas e imprevistos, e não é possível simplesmente deixá-la do lado de fora da porta do consultório. Ainda assim, é justamente nesse encontro entre fragilidade e força que a escuta clínica pode se aprofundar e se tornar mais cuidadosa, madura e responsável.

A vida que nos atravessa dentro do consultório

Quem trabalha na clínica psicológica sabe: não existe uma porta mágica que deixamos a vida do lado de fora quando começamos uma sessão. A vida pessoal nos acompanha. E, por mais que tentemos separar, ela atravessa nossa escuta, nossa presença, nossas emoções.

Ao longo dos meus quase 20 anos como psicoterapeuta, vivi inúmeras vezes esse desafio. Como sustentar a escuta clínica quando também estou atravessada por dores e acontecimentos pessoais?

É um dos desafios mais provocativos, difíceis e árduos que nós, psicólogos, enfrentamos.

A ilusão de “colocar a dor no bolso”

Existe uma crença ingênua — muitas vezes sustentada por psicólogos imaturos ou por quem desconhece a profissão — de que seria possível simplesmente “colocar a própria dor no bolso” para cuidar do outro. Essa ideia é perigosa e reducionista, porque ignora o óbvio: somos humanos.

Não existe uma cisão mágica que nos torne pessoas diferentes dentro e fora do consultório. A verdade é que, quando atravessamos dores, elas nos acompanham. O que faz diferença não é negar ou esconder, mas sim reconhecer com maturidade, responsabilidade e cuidado quais são os nossos limites.

Esse reconhecimento não enfraquece a clínica, ao contrário: é expressão de ética, humanidade e profissionalismo.

Leia a Revisão teórica que examina o papel do autocuidado (self-care) para promover o bem-estar de profissionais de saúde mental. Muito pertinente para quem vive situações pessoais desafiadoras.

Quando a perda amplia a escuta

Houve momentos em que minhas próprias dores, paradoxalmente, ampliaram minha escuta.

Recordo-me de atravessar uma perda significativa: alguém muito importante morreu, e eu não pude estar no funeral nem compartilhar com ninguém essa ausência. Precisei parar por alguns dias, cuidar de mim, elaborar meu luto em terapia.

Ao voltar, algo mudou. Eu atendia, na época, um homem em processo de divórcio. Trabalhamos diversas camadas de dor até que emergiu algo mais profundo: a perda do casamento era também a lembrança de uma perda antiga, a ausência da mãe em sua vida desde a infância.

Esse vínculo interrompido havia deixado uma lacuna tão grande que interferia em todas as suas escolhas, inclusive no casamento que agora se desfazia. Só consegui perceber isso porque eu mesma vivia uma perda intensa e podia ouvir com o corpo inteiro — não apenas com os ouvidos, mas com a alma.

A clínica é, também, esse encontro de dores que, quando bem elaboradas, se transformam em recursos de escuta.

Musculatura emocional: suportar a angústia sem deixar que ela nos engula

Atravessar dores pessoais enquanto seguimos atendendo exige o desenvolvimento de uma verdadeira musculatura emocional. É suportar a própria angústia sem acreditar que ela é o mundo inteiro. É saber que ainda há espaços e momentos para chorar, elaborar, resolver — e que esses espaços não podem ocupar a escuta do paciente.

Esse movimento fortalece nossa prática e nossa vida. Somos provocados a criar novas possibilidades de enfrentamento e, com isso, amadurecemos como pessoas e como profissionais.

Infográfico sobre clínica ética e desafios pessoais, mostrando como limites, escuta clínica, ética no consultório e prática se fortalecem na dor.

O inesperado: quando a vida exige reservas

Com relação a esse assunto, vivi um grande desafio em uma situação inesperada: por alguns dias, perdi de forma completa o suporte de cuidado do qual dependo. Talvez você que me lê não saiba, mas sou uma mulher com deficiência e tenho um grau elevado de dependência da mediação de cuidados de outras pessoas. Naquele período, minha cuidadora adoeceu de repente e não pôde retornar ao trabalho. O impacto foi imediato: desespero, ansiedade e até a sensação concreta de ameaça à vida.

Depois de uma noite tomada por sentimentos tenebrosos, consegui mobilizar minha rede de apoio, sobretudo apoio profissional. Isso, naturalmente, exigiu de mim recursos financeiros. E foi nesse ponto que agradeci a Deus e ao conhecimento adquirido alguns meses antes, quando havia começado a montar uma pequena reserva financeira. Não que eu tivesse previsto uma situação exatamente como essa, mas já compreendia que viver implica equilíbrio dinâmico, especialmente quando se convive com a diversidade e com uma condição que nos coloca em vulnerabilidade constante.

Apesar de toda a dor e da angústia, consegui me sentir grata e até aliviada. Pensei: “pelo menos, o dinheiro não é um problema agora”. Eu só precisava lidar com a busca por uma nova cuidadora, e isso já era suficiente para aquele momento.

Entre dores e escuta: a vida que caminha junto da clínica

Costuma-se dizer que a vida pessoal invade o consultório. Mas, à luz da experiência e da prática, prefiro afirmar: ela caminha conosco. Não há como separar. Somos psicoterapeutas exatamente porque somos humanos — com nossas dores, perdas, alegrias e fragilidades.

Sustentar uma clínica ética em meio a desafios pessoais não significa negar a vida que pulsa fora do consultório, mas sim reconhecer limites, valorizar nossa humanidade e integrar nossas vulnerabilidades de forma responsável. Essa integração nos ajuda a cuidar tanto de nós quanto de quem nos procura.

A vida nos pede força em várias dimensões — mental, emocional, espiritual e também financeira. E é no atravessamento dos desafios que crescemos. Cada vez que vivemos uma dor e a elaboramos, voltamos à clínica diferentes: mais maduros, mais éticos, mais cuidadosos e com uma escuta ainda mais afinada.

A ética que se fortalece no encontro

Sustentar uma clínica ética em meio a desafios pessoais não significa estar imune à dor. Pelo contrário: é justamente nesse atravessamento que descobrimos nossos limites e ativamos recursos internos e externos para seguir presentes no consultório.

Quando reconhecemos nossa humanidade — com suas fragilidades e forças —, abrimos espaço para uma prática mais cuidadosa, madura e verdadeira. Não se trata de esconder a dor, mas de elaborar com responsabilidade, para que ela não transborde sobre quem nos procura.

É nesse equilíbrio, entre dores vividas e a escuta oferecida, que nasce uma ética mais profunda: aquela que nos torna profissionais com habilidades de escuta do não dito e já reprimido pelo paciente, empáticos e capazes de acolher com inteireza.

Agora eu gostaria de ouvir você: como a sua vida pessoal já atravessou sua prática profissional? Compartilhe nos comentários do blog ou no meu Instagram. Vamos multiplicar essa conversa e fortalecer nossa comunidade de psicoterapeutas.